sábado, maio 26, 2007

A nostalgia da borboleta

Ontem eu vi um homem que há anos eu não via; um homem que atormentou meus doze anos... Um homem que ocupou meus pensamentos durante anos, que me fez entender muita coisa sobre o que as pessoas podem perder e nunca mais recuperar.
Eu estava na sexta série, estudava no período da tarde num colégio próximo daqui de casa (colégio onde passei boa parte da minha vida), ele me levava para o colégio no seu transporte escolar.
Típico homem medíocre, vazio, com semblante de “malandro”, associado da “Vai-Vai”, sempre de boné, nas horas vagas oscilava entre a noiva (loira com semblante de vulgar) e a atendente da auto-escola (morena, nome estranho, também com semblante de vulgar). E ainda dirigia um Chevette azul.
Este homem de vocabulário pobre, aspirante a nada que fosse valer a pena; este homem era o meu tal “primeiro amor”.
Eu era infantilmente “apaixonada” por ele...
Aos doze eu já tinha certa pose de “mocinha grande”, usava o cabelo de um jeito diferente e fui a primeira da escola a ter cabelo repicado (“do tipo menor na frente, saca?”), entendia muito de música para um serzinho de doze anos, me expressava muito bem também, e já rabiscava alguns fetos de poesia...
E eu sofria, sofria tanto por não ter o “tio da perua” que sempre me dizia frases de senso-comum que nos outros me irritava, mas vindas da boca dele faziam todo o efeito...
E eu chorava, escrevia, “amava” e sonhava...
Um dia decidi que iria declarar o meu amor...
Levei dias e dias, dizendo que precisava dizer algo...
Um certo dia, eu disse “amo você”! Com a veemência duma mulher de 20 anos, veemência essa que sequer hoje eu tenho para amar.
Ele sorriu...
E naquele sorriso eu via o mundo que nunca faria parte. Um mundo pequeno, limitado, repleto de coisas que nunca farão sentido...
Só que o mundo que eu queria ver era outro e com dozes anos a gente só vê o que quer... E ainda bem...
Então, ele sorriu e na hora em que eu ia descer da “carruagem” ele me disse todo mal-intencionado: “Você não vai me dar um beijo?”.
Eu sorri, toda encabulada –voltara a ter doze anos- beijei-lhe a face e desci tensa para à casa.
Até hoje eu não entendo se ele queria mesmo aquele beijo ou se só queria ver o que iria fazer. No fundo ele sabia que eu não iria beijá-lo, não ali, naquela situação.
Porém, hoje eu sei que jamais iria lhe beijar, perderia toda a sensação que, hoje sei, era o que eu precisava.
Amava sim, o que nunca iria acontecer entre nós. Amava o amor que eu sonhava em sentir e que teoriza naqueles olhos verdes que eu nunca vou esquecer e não esqueci.
Ontem eu o vi numa pizzaria próxima à antiga casa dele.
Estava eu com minha mãe e seu namorado, eu rindo e blasfemando bobagens sobre o que me acontece - como sempre faço quando estou com eles -, quando minha mãe comenta sobre a roupa grotesca duma criança no colo do pai.
Eu me viro para olhar e reconheço a touca vermelha do pai da criança. Não sei, algumas imagens marcam nossas vidas, eu olhei e sabia que era ele, a mesma touca de sete anos atrás.
Fiquei olhando perplexa, quando notei que além da criança, uma mulher loira, gorda, com cara de cansada, sentada sobre a mesa o acompanhava: esperavam uma pizza, não sei.
Ele que olhava para o lado se virou e me viu, no instante ele sorriu, e disse “oi” baixinho, talvez para a loira não ouvir...
Eu perdi a pose, o assunto, o ar, fiquei sem graça, já não sabia mais como me portar na mesa...
Mexia no cabelo compulsivamente, sorria nervosa, fazia caras&bocas e olhava pelo cantinho dos olhos e via que ele também me olhava.
Eu dispensaria a pizza e a minha pepsi twist em troca de saber o que ele pensou, o que sentiu, o que aquele olhar quis dizer.
Dei uma golada no vinho de muito mau gosto que minha mãe pediu, pra ver se eu descontraia e voltava ao normal.
Eu nem quis ver quando ele foi embora, talvez essa cena toda tenha durado uns cinco ou dez minutos, eu não sei.
Foi desconcertante vê-lo ali, com aquele pequenino guri nos braços, aquela “esposa” grotesca, envelhecida, tão mórbida de se ver.
Talvez seja uma grande bobagem ficar assim sem chão por ver que as pessoas não ultrapassam jamais o destino que esperam delas.
Eu vi aquele homem tão sem cor, tão parte duma rotina banal e me deu saudade das luzes que só eu - quando menina de doze anos – iluminou naquele rosto triste.
Será que ele lembra daquela época?
O que será que ele me diria se pudéssemos um dia conversar?
Sempre pretensiosa, talvez ele tenha se decepcionado tanto quanto eu, eu também mudei, eu também me tornei vazia, também não tenho mais olhos vivos, também envelheci e ocupei o espaço que me cabia na vida comum e banal.
Isso não tem importância alguma eu sei, faz tanto tempo.
Hoje eu sei que com doze anos eu era muito mais austera que ele, sei que ele aprendeu muito mais comigo do que eu com ele.
Ontem foi um dia estranho.
O problema é que odeio quando meu passado passa por mim, e ele sempre faz isto quando eu penso que eu estou caminhando (em ritmo de via-crúcis) rumo ao futuro.
Ainda ontem eu vi a mãe duma antiga grande amiga minha que se casou no ano passado.
Ela me olhou surpresa, talvez pelo casaco “afetado” que eu estava usando ontem (elegantíssimo!) ou talvez pela pose de garota bem-resolvida que eu peguei emprestado de alguma musa das canções do Jobim.
Ela me perguntou sobre minha mãe, aquela preocupação instantânea que dá nas pessoas quando elas passam muito tempo sem se ver...
Contou-me que minha antiga amiga está grávida.
Tentei conter a perplexidade que me tomou a face.
Eu nunca sei o que dizer nestas situações, sempre digo coisas como “sério?”, “não acredito”, “que bom!”; eu sou daquelas pessoas sem graça e sem reações espontâneas de surpresa ou alegria.
Ela desceu do ônibus e eu sentei em seu lugar, fiquei pensando no quanto eu e a filha dela éramos amigas, no quanto éramos parecidas, pensei na cumplicidade, nas noites de sábado que partilhávamos...
Lembrei de quando ela se mudou daqui do bairro e que nos vimos uma vez por ano desde então.
Recebi o convite do seu casamento no ano passado, lembro que chorei no dia em que ela casou, porque eu realmente não conhecia aquela garota vestida de branco, ainda tão linda, ainda tão parecida comigo no jeito de andar...
Ela tentando fingir felicidade por eu estar ali e eu tentando fingir que não chorava, enquanto realmente desejava que ela fosse feliz, nem que eu tivesse que dar o pouco que eu tinha pra completar a dela.
E ela nunca vai saber disso, eu nunca vou poder dizer nada disso pra ela, dizer o quanto eu senti a falta dela quando ela mudou daqui, o quanto eu lamentei não fazer parte de nada daquilo.
Ela nunca vai saber que eu esperava bem mais dela.
Ela tem dezenove anos apenas, eu tenho dezenove anos apenas.
Nós apenas temos dezenove anos!
Dói muito em mim como as pessoas se perdem uma das outras.
Dói muito porque não é falta de amor, não é por nada que possamos controlar, ou entender...
Eu sinto tanta saudade dos tempos que passaram, das noites na casa da minha antiga amiga, das besteiras de menina que compartilhávamos; saudades do “amor” pelo “tio da perua”, saudades daquela tranqüilidade que eu fazia questão de abalar, mas que ainda prevalecia, tanto que eu sei que realmente existia e que me faz tanta falta hoje.
Talvez eu receba o convite para o chá-de-bebê da minha amiga. Talvez eu nem vá e sequer a veja este ano.Ou talvez ela sequer mande um convite. Talvez eu veja o homem de novo, talvez não.
Essas coisas me doem muito, talvez por seu ser tão ligada ao meu passado; às pessoas que eu amo, às experiências que fizeram de mim quem sou hoje ...
Talvez por eu não saber conjugar amor no passado.
Talvez por ser um pouco ingênua e sentir o mesmo afeto por pessoas que foram presentes um dia e que não vejo mais.
Enfim, hoje a labuta é outra e o tempo não pára nem vai esperar...
(E hoje eu sei: ninguém espera ninguém!).
Essas madrugadas frias me deixam assim...
E essa dor é tão comum que logo passa.Como tudo que passou, sem deixar nenhum vestígio, nenhuma palavra guardada para madrugadas como essa.
Don’t worry about me.

quinta-feira, maio 10, 2007

Atraso ( no dia que a nossa ampulheta atrasou)

Era tarde,
Era tarde!

A unha ruída, lascada e suja do tempo arranhou o mais altivo dos veludos,
e era tarde.
Sim, meu amor é tarde.

E vai envelhecendo nossa paz,
já não precisas de mim para me amar,
é tarde, é tarde pra dizeres que me ama,
(porém, você me ama! e todos aqueles bêbados do bar sabiam disso por mim)


E eu tardo
você tarda,
só nosso amor não tarda.
Nosso amor se tarda morre como uma ampulheta quebrada,
num dia em que uma ampulheta atrasar.
Era tarde.
Era tarde.

E até nosso abraço te atrasa,
atrasa sua vida nova,
vida nova amor,
vida que não tarda,
mas que ainda vai comer seus ponteiros pra que não notes que estas de novo atrasada.
Mas calo-me como o relógio daquele bar,
Eu sim tardei.
Era tarde.
Era tarde.


A verdade é que a vida atrasa,
quando quem sente não sabe como sentir...
e atrasa!
( e se acaba)
E nunca mais se acha na correria dum atraso.

Até o dia em que o desejo perde a pose,
(é tarde, é tarde)
e a lembrança é que tarda em nos deixar ser nós mesmos...
E das mãos fica a lembrança dum longo abraço,
dum cigarro amassado,
dum amor que não cabe mais num desconforto dum atraso.


Amanda Cristina Carvalho
(numa manhã fria de maio)