sábado, abril 10, 2010

tentativa de contar a vida pra Torres.

Nasci em março de 1988, minha mãe estava com 39 anos quando engravidou de mim, meu irmão do meio 14 anos e o mais velho 16.
Nasci de uma cesárea, no começo de uma tarde de um dia frio. Quando março ainda era frio.
Aprendi a ler aos cinco anos, com minha mãe, entrei na pré-escola aos quatro anos. Minha mãe trabalhava quase em tempo integral e eu contratava algumas mulheres para cuidar da casa e de mim.
Aos três anos descobri um vinil dos Doors e repetia que era o “moço bonito” (Jim Morrison).

Lembro-me de quando os dias tinham o gosto bom do suco de hortelã que minha madrinha fazia pra mim.
Eu respirava a vida e meus cachos caiam por meus ombros desnudos: cintilante inocência.
Lembro dos olhos brilhantes e negros do meu pai, seu rosto corado pelas tardes: estende-se a alma na lembrança de traços tão finos e belos que enalteciam meu coração.
O cheiro dos bolos que ele fazia em minhas datas natalícias, a brisa doce dos sonhos de creme que povoavam meu imaginário pueril de alegria transbordante.
Cinco anos, cinco destinos (que se reduziram fatalmente em pedra no chão), os cabelos dourados da mãe, a calvície terna do pai sorrindo; ambos vestiam sempre a cor branca (a mãe enfermeira, o pai confeiteiro). Um branco tão altivo, para zombar de mim, anunciando a paz que jamais me acompanharia no decorrer da vida voraz...
Certa vez aos cinco anos, me joguei de uma pedra na praia do sonho em Itanhaém, uma tia conseguiu me agarrar antes que a correnteza do mar me levasse.
Não me recordo do que me impulsionou a tal, só me lembro do gosto da água, que parecia ter sangue, tinha cheiro de sangue, hoje penso que talvez seria de algum tubarão ferido.
Meu pai era confeiteiro, e no meu aniversário fazia um bolo escrito “parabéns Amanda” com letras bonitas, eu me achava o máximo por ser a única da rua que tinha bolo com o nome escrito.
Era uma criança tranqüila, que gostava de desenhar e de brincar sozinha; muito ligada ao pai, que feneceu vítima de um assalto quando eu estava com oito anos.
Descobri minha mãe desde então... Porém, morei um tempo na casa de minha tia, pois tive que mudar para uma escola pública, meio as tormentas financeiras e emocionais da morte do pai.Era um tempo solitário, pegava um ônibus que ia da vila Mariana até o parque bristol, ia cantando legião urbana no ônibus, minha prima e sua amiga não se identificavam muito comigo.Acabara de perder o pai e estava em terra estrangeira novamente, meu tio fazia tranças no meu cabelo, fazia o mesmo com minha prima, mas ela tinha o cabelo bem armado e eu nem tanto. Odiava as tranças e a vitamina de banana com abacate que eu engolia com certo asco antes de ir pro colégio.
No colégio na Vila Mariana, público, conheci um pouco da vida, via de longe garotos fumando, com rostos cansados, diferentes dos que eu conhecia, na segurança do privado.
Aos onze anos comecei a escrever poesias e algumas crônicas, aos doze “me apaixonei” pelo “tio da perua”, paixão que durou até os quatorze anos e que rendeu-me muitos escritos, que eu queimei no fim da oitava série.
Houve aquela vez que bati com a cabeça da guria do pré no fundo da pia entupida e de azulejos gastos, ela me ofendeu, ou ofendeu uma amiga minha (amizade pra mim sempre teve grande significância), naquele dia senti medo e um pouco de pena, fui levada para conversar com a diretora, a garota chorava de soluçar, eu assumi que havia agredido-a, mas não tive a intenção de rachar a cabeça da pequenina, Suelen seu nome, não esqueço.
Mandaram um bilhete pra casa, mostrei pro meu pai que me repreendeu pela violência; mamãe apenas me perguntou da razão da agressão.
Meu irmão me emprestava gibis, livros, me mostrava músicas e eu o admirava tanto por ser tão sensível e por tocar naquele violão a trilha sonora que me acompanharia pela vida afora. Longas melenas, roupas pretas... Como eu queria ser como ele! Tentou me ensinar a tocar violão, mas nunca tive a persistência necessária.
A natação me regozijava, meu pai me buscava no fim da aula e me comprava um misto.
Sempre fui muito comilona, e gostava dos sonhos que ele me trazia da padaria.
Minha mãe passava pouco tempo comigo, só tenho recordações de pequenas brigas e de como ela fingia interesse das coisas eu fazia na escola em dias das mães (ela nega o desinteresse, claro!), meu pai achava tudo que eu fazia lindo e passávamos tarde agradáveis brincando na sala, ou em mercados.
No dia em que meu pai morreu; eu não sentia meu corpo. E senti mais pena da minha mãe do que de mim mesma.
As férias passava em Minas Gerais num misto de tediosa morbidez e alguns espasmos de familiaridade, não gostava das minhas e de como elas se portavam, sempre odiei o medíocre e bebia vinho escondido.
Um dia meu pai perguntou ao meu irmão mais velho em que país moravam os unicórnios, meu irmão começou a rir num ar de superioridade tão irritante, riu, riu e depois disse que unicórnios não existiam. O odiei muito naquele instante e disse ao meu pai depois que os unicórnios existiam e moravam em todos os lugares, e que somente os corações que mereciam podiam ver.
Fiz judô por um tempo também, não gostava muito das crianças que faziam aula comigo, e tampouco do professor, que na mudança de faixa passou todos do meu grupo para a azul escura e eu sem motivo algum somente para a cinza, achei injusto e após a cerimônia de mudança de faixa em que chorei escondido no banheiro, nunca mais voltei ao judô.

Não era uma menina fresca ou frágil, tinha complexo de superioridade, queria sempre parecer mais velha do que era, e de fato eu era bem mais velha que todas as outras crianças, na alma talvez. Achava tudo bem idiota. Mas sorria muito.